sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Atendimento Preferencial

”Os lugares mais sombrios do Inferno são reservados àqueles que se mantiveram neutros em tempos de crise moral.” 

No primeiro dia útil depois do Natal, o sujeito acordou cedo e foi resolver uma pendência simples, numa loja de uma prestadora de serviços públicos. O sol brilhou cedo e o calor de verão já era sentido mesmo às oito horas da manhã. Caminhou até a Praça Saens Pena, onde pegou o metrô, felizmente vazio, e saltou, duas estações depois, na Praça Afonso Pena. A Tijuca é um bairro do Rio de Janeiro que ainda conserva algumas tradições dos anos 1970, como os prédios baixos, com árvores nas calçadas, e a região da antiga pracinha leva qualquer um ao passado. 

Caminhou uns 10 minutos e, finalmente, chegou à loja da prestadora. Prontamente atendido, recebeu a senha N007 o que o satisfez, já que o N004 já estava em atendimento. Escolheu uma cadeira logo atrás de um homem que dormia; parecia cansado, barba por fazer e seu aspecto era intrigante. A seguir entrou outro homem com dois celulares, um tablet, com jeito apressado e suando bastante, que recebeu a senha N008. Aborrecido, sentou noutra fileira e ficou mexendo nos brinquedos que levara. 

O sujeito, então, percebeu que a letra antes da senha tinha um significado: uma senhora com uma criança de colo, foi chamada a seguir pela senha P001 o que causou alguma revolta no homem apressadinho. 

- Inferno! 
- Ah! O senhor também leu? - o sujeito tentou ser simpático, mas foi ignorado pelo homem. 

Sentindo que a coisa poderia demorar, resolveu continuar o livro que começara há alguns dias. Faltavam umas 120 páginas e, como estava confortavelmente instalado e o ar condicionado funcionava como no Ártico, achou que poderia adiantar a leitura. 

Logo a seguir, entrou uma senhorinha, daquelas bem arrumadas e cheirosas, tipicas da Tijuca, que foi chamada a seguir da P001, pois tinha a senha P002. Concluiu que o “N” significava “normal” e o “P” “preferencial”. Realmente uma boa codificação, já que temos que priorizar os idosos, as gestantes, mães com crianças de colo e ter alguma paciência porque supermercado, banco, consultório médico e prestadora de serviços públicos são locais onde não adianta ter pressa. 

Algum tempo depois, absorto pela leitura, resolveu dar uma olhada no monitor: o N005 estava em atendimento e a fila do “P” já estava no P022. A prestadora possuía 10 box de atendimento, mas somente um funcionário dai a demora. Ele entendeu e retornou à leitura, interrompida pelo movimento do sujeito dorminhoco que acordou, abriu sua mochila e tirou de lá uma escova de dentes e um barbeador, dirigindo-se ao atendente, que fornecia a senha, que indicou o banheiro. 

Faltando menos de 30 páginas, um ônibus de excursão parou na porta e 42 “senhorinhos” e senhorinhas entraram para pegar a senha. O homem que dormia, agora devidamente higienizado, foi chamado, ficou satisfeito, e ele seria o próximo. Só que, com a entrada das pessoas do ônibus, isso poderia demorar muito. Para sua sorte, aquele apressadinho que falei antes, ao ver que não trouxera escova de dentes e barbeador, deu um piti infectado e rolou no chão em convulsões. A fila parou, foi uma grande confusão, o sujeito, que acabara de terminar o livro, foi atendido e liberado porque seu problema era simples de resolver. O SAMU chegou, levou o convulsivo e depois ele não soube mais nada. 

Seguiu pela rua, pegou o metrô de volta, entrou num restaurante e ligou para seu pai. 

- Ei pai! Resolvido e agora vou almoçar... não, não é jantar não... é almoço mesmo. Ah! O livro é ótimo e terminei também. Correu tudo bem! Sim, depois te empresto e você vai gostar porque é ação o tempo todo, muita "mentirada" também, mas fala de umas coisas bonitas lá da Itália, uns museus, monumentos, tudo de bom... sim... então tá, depois a gente se fala.  


Boa Noite! Eu sou o Narrador.

Um comentário:

  1. Gosto de ir ao banco, principalmente porque posso passar na frente de todos da fila, e conversar com a mocinha do caixa.

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