domingo, 28 de dezembro de 2014

O Velho, O Preto e a Sabiá

Naquele período, onde você aprende com seus pais o que é certo e o que é errado, eu aprendi que não era socialmente correto chamar um senhor de idade avançada de “velho”. Aprendi isso quando entrei num ônibus, com minha mãe, fiz exatamente isso e levei um “pito”, pedindo desculpas a seguir (bons tempos em que as crianças recebiam boa educação). Hoje em dia esses “senhores de idade mais avançada” são chamados de “pessoas da melhor idade”. Tudo vai mudando, para não ofender ninguém. Só que, na poesia, nem sempre isso é possível. Imagine os tradutores da obra de Ernest Hemingway colocando o título como “O senhor, na melhor idade, e a vasta extensão de água salgada que cobre grande parte da superfície terrestre”. 

O velho era muito velho. Já vivia sozinho há muitos anos, desde que sua velha partiu para lugares melhores, onde todos iremos um dia. Passava parte do mês na cidade e parte do mês na casinha interiorana, onde recebia visitas e cuidava das suas galinhas. Durante o dia, nos vários momentos de folga, ficava sentado na varanda ou, então, cochilando no sofá, quando não andava pela cidade. Gosta de doces e se você for visitá-lo, leve de figo ou de pêssego, mas ele não rejeita pudim de leite. Um belo dia, ele ficou doente (velho fica doente, não é mesmo) e não apareceu na sua varanda durante um bom tempo. 

Chamar alguém de preto pode ter um tom pejorativo. Aí, o socialmente correto virou “pessoa afrodescendente”, até que descobriram que 67,1% dos genes de Luiz Antônio Feliciano Marcondes, o Neguinho da Beija-Flor, têm origem na Europa e apenas 31,5%, na África (clique aqui para conferir). Ele é branco? E eu? Por que eu não sou “afrodescendente”? 

Enfim, lá na casa do velho tinha um preto que cuidava das galinhas, na sua ausência. Era velho, mas não era tão velho e também não era um preto velho, se bem que era umbandista, mas disso eu não sei nada direito. Muito conversador, uma barriga invejável e, até agora, não sei como ele conseguiu passar pelo alçapão que dá acesso ao forro da casa, onde ele lavou a caixa d'água. Quando ele chegava perto das galinhas, elas já sabiam que era o horário da comida e iam na sua direção (com o velho era a mesma coisa). Eu também cheguei perto do galinheiro, mas as galinhas não vieram na minha direção. Ficaram imóveis, como se alguém tivesse gritado “estátua”, que nem naquela brincadeira infantil, lá do meu tempo. 

Sabiá é um pássaro, mas também é personagem da “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Além disso, é nome da música vencedora do III Festival Internacional da Canção em 1968. Recebeu uma vaia enorme porque o público queria (queria?) “Caminhando” do Geraldo Vandré. Várias outras músicas falam do pássaro que é bem interessante. 

Lá na casa do velho, onde também tinha o preto, uma sabiá (para concordar com o Chico Buarque) chegava na janela da copa e ficava batendo, com o bico, no vidro da janela. Servia para me acordar, pois mantinha o mesmo horário, logo com os primeiros raios do sol. De tarde voltava e até em outros momentos. Disseram que ela fazia isso porque via seu próprio reflexo e pensava que era outro da mesma espécie. Ah! Que falta de poesia! Tenho certeza que a sabiá só fazia isso para ver se o velho aparecia, quando ela voava de novo. Se as galinhas reconhecem aqueles que as alimentam, claro que a sabiá também reconhece seus vizinhos. 

Aí o velho ficou bom da doença (foi coisa rápida), mas andou debilitado e passou mais tempo na casinha do interior. As galinhas ficaram contentes, o preto teve com quem conversar e a sabiá voltou a chamar na janela. 

Bons momentos de cidade do interior...  

"Não permita Deus que eu morra 
Sem que eu volte para lá 
Sem que desfrute dos primores 
Que não encontro eu cá 
Sem que ainda aviste as palmeiras 
Onde canta o sabiá"  





Boa Tarde! Eu sou o Narrador.

Um comentário:

  1. Veio é véio. Senhor tá lá no céu, que é pra onde os véio não tem pressa de ir. E esse negócio de melhor idade é mentira, se fosse melhor idade, o bom era ser novinho pra chegar na melhor idade desde o começo, porque sexta feira é melhor que domingo...

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